Quando Dom João aportou no Rio de Janeiro no início do século XIX viu uma cidade infestada de negros seminus, muita sujeira, pessoas sem a menor educação, pequenos roubos, delinquências médias sem nenhuma punição. O português não tinha nenhum savoir faire de noblesse, mas preferiu se abster dessa cultura brasileira já arraigada e deixar seu filho se imiscuir pelas vielas da capital. Dom Pedro I esteve entre negros, mulheres da vida, boêmia, arruaceiros e até bandidos: como príncipe não procurou descobrir a razão daquela vida que levavam e tentar uma melhoria significativa nessa sociedade já corrompida. Pelo contrário, apenas se limitou a imitar e fazer parte de algumas mazelas que o Rio já enfrentava naquela época.
No início do século XX, o prefeito Pereira Passos quis se atualizar à Belle Époque européia e destruir tudo que fosse o contrário da beleza, luxo e perfumaria no Rio de Janeiro. Sinal disso é a Avenida Rio Branco, centro da cidade, onde havia cortiços, esgoto à céu aberto, casas do tempo colonial que não ornavam com a nova República, favelas e morros com população desordenada. Ou seja, as mazelas do povo do tempo colonial foram apenas varridas pra debaixo do tapete. Getulio Vargas apenas refez o que Pereira Passos iniciou: destruiu mais metade do patrimônio histórico do Rio pra construir uma larga avenida que leva seu nome e que por anos permaneceu sem nenhuma construção interessante.
Anos 50, zona sul crescendo, se modificando, cidade maravilhosa um símbolo da beleza natural. E assim foi até que nos anos 70 os morros, cantados em sambas e versos cheios de orgulho começou a mostrar os séculos de descaso com a população carente: surge o tráfico de drogas pesado que se torna poderoso e agressivo nos anos 80 e 90. Bandidos que mostram fuzis sem medo, matam jornalistas, intimidam a população da cidade, sequestram os bacanas da zona sul. Ora isso é o retrato do Rio de Janeiro desde o século XVII apenas modernizado, era o caos prenunciado mas velado, sob a forma do Rio way of life: malandro é malandro e mané é mané diria Bezerra da Silva ou ainda lá no morro quando olho pra baixo acho a cidade uma beleza, Fundo de Quintal.
2010. Crônica da morte anunciada. Polícia no Rio deflagra uma guerra contra o tráfico. O que fazer contra uma cultura carioca impregnada há séculos? Colocar policiais pra invadir o morro dominado pelo tráfico, sendo que este há muito está perdendo espaço pras milícias? Milicias formada por estes mesmos policiais que um dia irão se aposentar. Por que será que Tropa de Elite 2 foi focado justamente no enfrentamento de corrupção dentro do próprio Estado? Corrupção esta que faz parte desde que a Família Real chegou em 1808 e que já estava instalada, apenas ganhou contornos de beleza institucional. Então de que adianta invadir um morro, dois morros, dez morros se o problema não está lá? Está na população que apóia o tráfico e que agora vendo seus antigos patrocinadores e mecenas perdendo poder, se bandearam pro lado da polícia, que pode vir a ser a futura milícia do subúrbio. Está na falta de controle maior das fronteiras, um controle organizado, efetivo e ostensivo, com os mesmos aparatos usados agora nessa guerra urbana. Está também na cultura da população do "quanto eu vou ganhar com isso", da valorização da favela, da pichação como arte, do falar errado é pobrema meu, do futuro brilhante da Maria modelo e do João jogador, do quanto mais pobre melhor pra ganhar auxílio do governo.
Como querer resolver uma situação com enfrentamento de uma cultura permanente que encontra apoio nas camadas médias e altas, favorecendo a entrada de armas e drogas no país? Tolerância zero, mas não somente para os traficantes, mas também para milícias disfarçadas de policiais subversivos, população conivente, governo sem escrúpulos de uso de populismo para ganhar eleições, fronteiras devassadas e defasadas de monitoramento e principalmente tolerância zero para um orgulho de pertencer a uma cidade que ostenta o título de cidade maravilhosa, mas que aceita colocar por debaixo dos panos toda a podridão que cerca o seu dia a dia urbano. O problema do Rio de Janeiro não é do Brasil inteiro, é um problema só do Rio de Janeiro.
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